06 setembro 2013

"Entre os vândalos"

"O essencial em um trabalho jornalístico é seu imperativo de objetividade. Cabe a ele registrar e transmitir a verdade dos fatos, como se a verdade estivesse ali, exposta à visitação, aguardando a chegada do repórter. Tal é a premissa do jornalismo objetivo. O que esta premissa exclui, como qualquer estudante de literatura moderna lhe dirá, é aquele fato incerto e relativo referente ao responsável pela reportagem, a moderna noção de que não existe o percebido sem aquele que percebe e que excluir as circunstâncias envolvendo a história é relatar uma inverdade. Tais circunstâncias poderiam incluir o fato de você ter corrido para apanhar um avião, ter tido muito o que beber no caminho, ter chegado e percebido que está vestido para os trópicos quando na verdade está quase nevando, que você esqueceu suas meias de lã, que você trouxe apenas lentes de contato, que você, afinal de contas, não vai conseguir a entrevista e que então, às quatro e meia, você deve registrar sua história, sendo obrigado a criá-la em sua maior parte. Poder-se-ia argumentar que as circunstâncias têm mais do que um peso casual na verdade relatada.

Não é minha intenção contar uma inverdade e sinto-me compelido, portanto, a ressaltar que, nesse momento, pouco depois de cruzar com a tão desoladora figura do sr. Wicks, o repórter tomou consciência de que as circunstâncias envolvendo sua história tinham se tornado relevantes e significativas e que, caso ignoradas, seu relato dos fatos que se seguem estaria amplamente incompleto. E suas circunstâncias eram as seguintes: o repórter estava muito, muito embriagado. 


Ele não poderia, portanto, lembrar de muita coisa quanto à viagem de ônibus, exceto uma vaga e nebulosa ideia de que havia menos gente no ônibus dessa vez e que, espantosamente, o motorista era o mesmo. O outro fato de que se lembra é o de ter chegado."


























Na Inglaterra, jornalista americano se deixa seduzir pela conduta de hooligans locais (as brigas, as bebedeiras, o fanatismo pelo clube) e, sem perceber, se torna um deles.

Alguém aí pode pensar que esta é a sinopse de "Hooligans" ("Green Street Hooligans"), o filme de 2005 com Elijah Wood.

Até poderia ser. Mas não é.

É, na verdade, uma forma um pouco forçada (eu admito) de apresentar o livro "Entre os vândalos" ("Among the thugs"), de Bill Buford, jornalista americano radicado em Londres. Mas verdade mesmo é que o filme guarda muita relação com o livro - não que seja baseado nele, mas a inspiração é inegável.

Narrado todo ele em primeira pessoa, "Entre os vândalos" é um mergulho no submundo das "firmas" inglesas da década de 1980, tempo das tragédias de Hillsborough e de Heysel e de todo aquele cenário que mudou o futebol mundial para sempre.

Sem cerimônias e sem muito pudor, Buford apresenta uma profusão de personagens doentios, sujos e desdentados. Mais que isso: cruéis, bêbados e perversos. É notável o apuro jornalístico com que o autor se dedica a entender um mundo que tem muito pouco a ver com sua realidade: ele vai fundo na investigação, corre riscos, apanha da polícia, se envolve com os tipos mais violentos que já frequentaram um estádio de futebol. Não há condescendência no tratamento concedido pelo autor para apresentar essas figuras: o relato é cru e, por vezes, repelente - não há como simpatizar com alguns dos personagens a que somos apresentados.

Buford, no entanto, não esconde que, em certos momentos, se deixa seduzir pelo poder da multidão, pelo fascínio imposto pela massa, pela perda da identidade quando se faz parte de um aglomerado violento. Ou, como bem resumido na apresentação do próprio livro: "Mais do que fazer um exercício de sociologia do comportamento grupal patológico, Buford nos mostra como a experiência da violência de massa, partilhada sob o manto do suposto anonimato, exerce um apelo insidioso, por vezes irresistível, até mesmo às mentes mais esclarecidas".

Ao longo de 321 páginas, o autor flerta com torcidas de clubes bem pequenos (Cambridge, por exemplo) e médios (West Ham) e vai até a Escócia (um Celtic-Rangers); mas é junto aos torcedores do Chelsea e especialmente do Manchester United que ele passa mais tempo.

"Assim, com a nova temporada, fui para Stamford Bridge. Eu tinha conhecimento sobre o Chelsea, a reputação de seus torcedores e o "barracão" - as arquibancadas cobertas no lado do campo que era ocupado, em pé, pela torcida do Chelsea. Cheguei cedo. Vi diversos policiais pelo caminho - eles estavam em cada parada ao longo do District Line do metrô -, mas quando atingi a estação Fulham Broadway eles estavam por toda parte. Viam-se cães no topo das escadarias da estação do metrô e, do lado de fora, cavalos carregando policiais munidos de cassetetes de 1,20 metro. Em meu trajeto, rumo ao estádio, vi homens com rádios: havia um praticamente a cada esquina. Um helicóptero circulava no céu, enquanto furgões percorriam com lentidão os pubs e as ruas estreitas. Ocorreu, então, algo que eu jamais poderia ter imaginado. Ouvi o trotar de cavalos, o som penetrante de vidro se estilhaçando e vozes berrando insultos. Vinha descendo pela Broadway uma escolta formada por dez cavalos e uma corrente de policiais cercando um grupo compacto, porém numeroso, de talvez mil pessoas: eram os visitantes."

Em especial na primeira parte (são três), há passagens memoráveis, elas todas facilmente reconhecíveis por quem não apenas vê o seu time jogar em casa, mas também viaja o país para isso. Buford encara algumas viagens arriscadas com grupos de torcedores que ele mal conhece; por mais que o cenário seja diferente e que os tempos sejam outros, a identificação é quase imediata:

"E assim quatro ônibus de torcedores chegaram, trazendo-os para o jogo ao qual haviam sido proibidos de comparecer, apenas para descobrir que uma porção de gente se adiantara a eles. De onde teriam vindo? A praça estava abarrotada. Enquanto nos espremíamos por ali, alguém acenou para nós, uma das mãos agitando-se loucamente acima da cabeça e a outra segurando o pênis, urinando dentro de um chafariz. Não se podia ter dúvida alguma quanto à sua nacionalidade, ou, nesse sentido, quanto à de qualquer dos demais, exemplares famintos e inchados de uma raça insular que, castigados pelo forte sol italiano, tinham tirado suas camisas, uma grande e gorda manifestação da história dos horários de funcionamento dos pubs, de litros e litros de cerveja e de incalculáveis quantidades de salgadinhos com sabor de bacon."

Bebe-se cerveja no submundo das "firmas" como em nenhum outro lugar do mundo. A meu ver, os melhores trechos do livro estão logo no terceiro capítulo, quando Buford viaja com os hooligans do United para um jogo decisivo contra a Juventus, em Torino:

"Perguntei a ele se poderia me informar onde estávamos.
Itália, ele respondeu. Estamos na Itália; e, em seguida, como que a título de esclarecimento: carcamanos de merda.
Eu disse, é claro, é claro, sabia que estávamos na Itália. Mas saberia ele onde na Itália?
Juventus, respondeu, ao fim de uma pausa, desconfiando tratar-se de uma pergunta capciosa. E acrescentou novamente, então, como que para reforçar a autoridade de sua afirmação: carcamanos de merda.
A cidade da Juventus?, perguntei.
É isso aí, ele disse. Pausa. Carcamanos de merda."

Tem mais ainda:

"Ele descreve o episódio na Itália. "Você se lembra do momento em que entramos no estádio? Todo mundo começou a atirar coisas em nós - garrafas, latas, pedras, tudo. Fiquei com uma cicatriz na testa, onde algum italiano me acertou com uma haste de bandeira. Éramos apenas duzentos. Éramos nós contra eles, e não fazíamos a menor ideia do que iria acontecer. Havia uma porção de sentimentos diferentes. Medo, raiva, euforia. Nunca senti nada parecido. Todos sentimos aquilo e cada um de nós agora sabe que passou por algo importante - algo sólido. Depois de uma experiência dessas, a gente não vai se separar. A gente nunca vai se separar. Seremos companheiros pela vida toda."

Em uma das tantas vezes em que menciona o "poder da multidão", Buford descreve a condição dos estádios ingleses naqueles anos:

"É uma experiência de contato físico constante e para isso contribui a forma como as arquibancadas são projetadas. Elas assemelham-se a cercados para animais e, tal como eles, oferecem tão somente a mais elementar das acomodações: um portão que é trancado assim que os espectadores entram; uma grade para impedi-los de abandonar a área ou saltar para o gramado; um lugar para eventuais intervalos - para lidar com a sede e a fome elementares; um lugar para urinar e defecar. (...) As condições são medonhas, mas essenciais: há um consenso de que qualquer coisa mais civilizada poderia diluir a experiência."

O momento do gol:

"E então, depois do silêncio, a explosão. Havia lugar e espaço a meu redor, e a multidão, explodindo, dilatando-se, erguia-se alguns centímetros acima do chão. Um estranho, que momentos antes parecera ameaçador e agressivo, agarrou-me ambas as mãos. Outro me abraçou. Virei-me e fui beijado no rosto. Fui abraçado novamente. Todos estavam em movimento, quando, subitamente, o movimento extrapolou meu entendimento e eu estava tropeçando para a frente, todos estavam tropeçando para a frente, despencando pelos degraus da arquibancada. Rolei por vários degraus - cinco, seis - e quando olhei para cima não havia ninguém em pé. Todos tinham caído e, apesar disso, a comemoração prosseguia. As pessoas se levantaram apoiando-se nos joelhos e estavam aos berros. Sempre eufóricas, algumas rolavam de um lado para o outro, dando chutes no ar, gritando de alegria, como se estivessem sofrendo uma confusão."

Buford dedica boa parte de seu esforço para entender também o estranho nacionalismo dos ingleses, de uma indisfarçada xenofobia, um tanto mais forte quando se está "representando" a seleção inglesa no exterior. Em Cagliari, por exemplo, em duelo contra a Holanda pela Copa de 1990. Não há qualquer sinal de futebol. Há apenas uma multidão desordenada que passa o dia entrando em confronto contra os policiais locais. Buford faz parte desse exército desordeiro:

"Esta fase da multidão - esta fase muito, muito feliz - durou aproximadamente quatro minutos. Durante esses minutos, todos, eu inclusive, sentiram o prazer de pertencer, algo semelhante ao prazer de ser estimado u amado. Havia também outra sensação de prazer, prazer este derivado do poder, ainda que esse poder não tenha sido exercido, ainda que fosse apenas um poder em potencial: o poder de uma multidão que tomara conta de uma cidade".

E então, senhores, fechamos assim:

"Na minha concepção, um evento desportivo fora sempre uma diversão paga, assim como uma noite no cinema; uma troca: você entregava uma pequena parcela de seus proventos, sendo recompensado com um intervalo de tempo (uma ou duas horas) de prazer, normalmente caracterizado por determinados aspectos - comida apetitosa, banheiros em bom estado, uma multidão sob controle, um lugar para estacionar o carro -, cuja tendência era encorajá-lo a voltar na semana seguinte. Para mim, isso era o normal. Podia ver que estava equivocado. Que princípio governava os eventos esportivos britânicos? A impressão era de que, em troca de algumas libras, você obtinha uma hora e 45 minutos caracterizados pela máxima exposição às piores condições climáticas possíveis e ao maior número de obstáculos - transporte precário, ausência de estacionamento, um aglomerado progressivamente perigoso na única saída existente, um tanque repelente e infecto para urinar, mudanças de última hora quanto ao horário do início da partida - a desencorajá-lo de alguma vez tornar a comparecer a um jogo.
No entanto, ali estavam todos, passando seu sábado.
(...)
... e, muito embora não pudesse dizer que conseguia estabelecer contato com qualquer um "deles", descobri, ainda assim, que estava criando gosto pelo jogo. Descobrira um jeito de me colocar em pé nas arquibancadas e assistir à partida - um avanço sofrível. Na verdade, eu já começava a apreciar as condições das próprias arquibancadas. O que, admito, me causou surpresa. Não me parecia algo natural, nem lógico. Era, segundo me parece agora em retrospecto, algo semelhante ao álcool ou o tabaco: repugnante num primeiro momento; prazeroso com algum esforço; viciante com o tempo. E, no fim, quem sabe, um pouco autodestrutivo".

###

Onde comprar: aqui, aqui ou aqui. Ou em qualquer boa livraria.

E aqui a Folha de S.Paulo traz um bom - e longo - trecho do livro, logo um que dá início à história.

12 comentários:

Jafé Praia disse...

Bela indicação de leitura, Barneschi.

rod t.t.i disse...

irei requisitar a compra deste alfarrabio e higienizarei meu esfincter com suas folhas

mais educado ne

Anderson Garou disse...

Qndo penso uma Antarctica Original, ele me vem com uma Amstel Litrão!!! Hehehe. Belíssima indicação cara!

Abs.

CASSELLl disse...

Boa!

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Raul Martins Dias disse...

Vou correr atrás. Felizmente, esse livro parece mais disponível, ao contrário de outras indicações suas, que, apesar de ótimas, não estão muito disponíveis aqui no """"""""""país do futebol"""""""""" (assim mesmo, entre muitas aspas).

Anônimo disse...

valeu! grande dica!!!!

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Grande dica. Já encomendei após ler o post.

acreano disse...

Muito bom!
acabei de comprar o meu na saraiva

André Fix disse...

Menção honrosa ao massagista da Aparecidense (GO), Romildo Fonseca da Silva, o Esquerdinha.

Segue o link http://www.estadao.com.br/noticias/esportes,aparecidense-admite-erro-de-massagista-mas-culpa-juiz-por-confusao-com-tupi,1072873,0.htm

Andre

Rafael disse...

Obrigado pela indicação. Comprei na Curitiba por R$25. Muito bom mesmo.