Escrevi já algumas vezes (destaco
esta aqui) sobre o significado de ser um torcedor visitante. Já fui forasteiro em estádios do Brasil e do mundo mais de uma centena de vezes, e a sensação é indescritível, por mais que eu me esforce para tentar uma descrição. Já fui estrangeiro em outros países sendo o futebol o mais importante elemento cultural de minhas viagens, já fui defender o Palmeiras em situações nem sempre tão turísticas, já me senti estrangeiro até mesmo em cidades brasileiras onde o ambiente não é dos mais convidativos (em Recife contra o Sport, por exemplo). E, como aconteceu ontem no Pacaembu, já fui estrangeiro na minha cidade.
Não foram poucas as vezes em que estive ao lado de outras hinchadas da América Sul em confrontos contra nossos rivais paulistas. É sempre uma experiência diferente, e não demora muito para você se sentir como parte daquele ambiente, quase como um estrangeiro dentro de casa. Não se trata, como pensam alguns brasileirinhos babacas, filhotes do cretino Tiago Leifert, de um oportunismo típico desses imbecis que só pensam em futebol na fase final; trata-se, isso sim, de se sentir mais à vontade diante da alma uruguaya do que da alienação conveniente do brasileiro.
Os carboneros vieram em grande número para SP. Mais até que os 2.400 anunciados previamente, uma vez que muitos partiram de Montevideo em direção à capital paulista sem ingressos. Entraram (sabe-se lá como) para empurrar o time à vitória, bem dentro do que se espera de uma hinchada latina. Chegaram cedo, tomaram parte do centro de SP e da Avenida Paulista, colocaram seus ônibus pela cidade para tocar o terror em quem não entendia que estava para acontecer uma final de Libertadores na cidade. Brigaram, fizeram "baderna" (segundo eu li em um site), mostraram o que estava por vir.
Final de Libertadores é guerra. Como bem disse o
Teo ontem à tarde, o lugar das famílias era em casa, assim como o dos canalhas que só aparecem na decisão para se proclamarem campeões de um título pelo qual não fizeram por merecer. Final de Libertadores pede pancadaria, ânimos exaltados, agressividade, tensão ininterrupta.
Vieram os uruguayos e logo ocuparam toda a arquibancada lilás. Nunca antes aquele setor ficou tão lotado quanto na noite de ontem - nem mesmo quando os grandes da capital ficam ali. Longe de aceitar as imposições dos coxinhas, os hinchas enfileiraram seus trapos por todos os cantos: na grade lá embaixo, na corda dos coxinhas, na marquise lá do alto, nas árvores, nos postes de iluminação, nas laterais com acesso normalmente proibido para os visitantes.
Repetiu-se o comportamento habitual dos bravos, valorosos e destemidos homens do 2º BP Choque: diante do desconhecido (no caso, barra bravas de outro país), eles tendem a recuar. Evitam entrar no meio das barras, observam à distância, permitem que alguns hinchas fiquem de pé nas laterais da arquibancada, entendem que as leis de promotores vagabundos não se aplicam a estrangeiros.
A Barra Amsterdam puxava os cantos ali no meio, e a parte mais inflamada da torcida seguia junto. Músicas poderosas, com pedidos de "huevos" e de total entrega ao clube. Um contraste com os desgastados gritos que ecoavam do outro lado (tenho a impressão de ter ouvido algo na linha "com muito orgulho, com muito amor...". Repugnante). Para quem estava no setor lilás, o que mais transparecia era o descompasso entre o ritmo da organizada e o do povão que estava no tobogã. É assim com qualquer torcida brasileira; não é exclusividade dos litorâneos.
Lá pelas tantas, converso com um sujeito que foi atrás do Peñarol em Porto Alegre (Internacional), em Santiago (U. de Chile), em Buenos Aires (Vélez) e, para finalizar, em São Paulo. Um feito notável mesmo para doentes incorrigíveis como eu. O discurso-padrão (deste e de outros) era algo na linha "viemos buscar o que nos pertence". É a obsessão pela Copa Libertadores, recentemente compreendida, aceita e seguida pelos brasileiros, mas que já permeia a cultura de um hincha uruguayo ou argentino há décadas.
Mas não havia apenas barra bravas. Seja pelo preço da passagem e do ingresso ou pela maneira como se distribuíram os 2.400 bilhetes, havia muita gente "das antigas" por ali: senhores já aposentados, executivos de terno, jovens que não pareciam pertencer a uma barra. E também algumas crianças e mulheres.
Alguns comportamentos da torcida santista não eram bem entendidos pelos hinchas uruguayos. O conflito com quem estava no tobogã era bem reduzido por conta da divisão feita pela PM, mas faltou manter as tendas abaixo do setor lilás, que normalmente isolam a passagem de torcedores "da casa" de quem está como visitante.
No intervalo, não poucos questionavam: "E o River, quanto está?" Ao saberem do 2-0 para o Belgrano, revelavam incredulidade. De dois ou três, ouvi um murmúrio: "Ai, River, River...". Algo como a minha lamentação por não aceitar o possível rebaixamento de um gigante.
E eu já me sentia como um legítimo carbonero, um estrangeiro na minha terra, como se tivesse nascido não ali a poucos quilômetros do Pacaembu, mas em Montevideo. Pois é, eu devia mesmo ter nascido em Buenos Aires ou em Montevideo, cidades que combinam muito mais com a minha alma futebolística.
Não raro, eu encarava a maioria de santistas do outro lado, e batia aquela sensação de um guerreiro que viaja até onde for para levar o time à vitória diante de uma multidão de inimigos. Parecia mesmo um estrangeiro, e quase pensei que teria ainda de encarar uma madrugada em claro até pegar o voo de volta para casa.
Do outro lado, a torcida do Santos me surpreendeu. Eu esperava um clima de festa, sem a devida concentração que pede uma final de Libertadores, mas tanto a TJS lá do outro lado quanto o povão pareciam bem conscientes do que estava por vir. Não se repetiu o clima festivo do pré-jogo, aquele mesmo que já derrubou outros clubes brasileiros em finais contra times de fora. Quem foi ao Pacaembu parecia ter entendido o que estava em jogo. Com exceções aqui e ali (e com alguns cantos que irritam pela infantilidade e inocência), o público local se portou bem. O time entrou também com esse espírito, e aí parecia mesmo difícil para o bravo e limitado time do Peñarol segurar o que estava por vir.
Ao final, o que se esperava de uma final de Libertadores: pancadaria, confusão, socos, pontapés, tumulto generalizado. Isto é futebol, isto é Libertadores, isto é América do Sul. É a mística, é a tradição, é o respeito à camisa. Tem gente que não entende e critica; mal sabem que a briga foi a melhor parte da noite, um mais do que necessário contraponto à forte presença de tantas marcas de empresas no campo, na arquibancada, nos malfadados camarotes.
Encerrados o jogo e a briga, os jogadores seguiram até a hinchada para agradecer o apoio. Atiraram as camisas para a arquibancada. Aplausos, uma euforia incomum depois de uma derrota e o justo reconhecimento aos que vestiram a camisa aurinegra naquela noite e durante toda a Libertadores/2011. O Peñarol é um gigante e o futebol vive no Uruguay.
Termino com o "editorial" de um
blog de hinchas do Peñarol:
"Lo único que podemos decir es que los jugadores dejaron todo, mucho huevo y mucha garra. Nada de fútbol, perdimos bien porque no creamos. Lo único que queremos es agradecer al plantel por habernos hecho soñar y llevarnos hasta la final de América, y agradecer a esta maravillosa hinchada que sigue demostrando porque es la mejor hinchada del mundo. La Copa Libertadores 2011 fue de la Hinchada del Club Atlético Peñarol y de eso tenemos que estar muy orgullosos".
“Tenés que dejar el alma y el corazón
Tenés que dejarlo todo por Peñarol!"